Para responder às questões de números
01 a 06, leia o texto de Clarice Lispector.
Amor
Um pouco cansada, com as compras deformando o
novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o
volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro
de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e
sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era
forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o
vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o
calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes
que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam
árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz,
crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e
sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e
forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da
tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais
precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais
sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de
se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande
tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar
os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a
cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida
podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a
raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera.
Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com
a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos
que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. […]
(01. QUESTÃO) - De acordo com o texto, pode-se afirmar que a personagem Ana
a) sintetiza as qualidades da mulher burguesa e rica,
que se responsabiliza pelo lar e em momento algum
questiona suas atribuições.
b) é símbolo da mãe e da esposa de classe baixa, que
vê nas tarefas do lar a verdadeira forma de ser feliz,
mas almeja ser independente.
c) representa a mulher de classe média que cuida de
suas tarefas, mas não sente prazer nisso, pois é incomodada por sua família.
d) é produto de uma sociedade feminista, o que se
pode confirmar pela autonomia que tem para realizar
suas tarefas.
e) constitui a referência do lar de classe média, no qual
tem como missão a tarefa de organizá-lo e de cuidar
dos familiares.
(02. QUESTÃO) - No texto, afirma-se que Ana “plantara as sementes” e
“E cresciam árvores”. Mais adiante: “Certa hora da
tarde as árvores que plantara riam dela”. Essa última
frase, tomada em conjunto com as anteriores, traz ao
texto um tom de
a) comicidade.
b) profecia.
c) perplexidade.
d) ironia.
e) indignação.
(03. QUESTÃO) - “Certa hora da tarde era mais perigosa.”
De acordo com o texto, essa informação deve ser
entendida como
a) um cansaço que envolvia Ana, depois de ter-se dedicado intensamente às tarefas do lar.
b) um desconforto de Ana, pois sua importância se perdia nesse período, quando não era requisitada nas
tarefas do lar.
c) uma irritação de Ana em relação à família, por não ter
o reconhecimento devido pelas tarefas que exercia.
d) uma forma de Ana reafirmar seu papel e sua importância no seio familiar, pois todos dependiam dela.
e) um incômodo que Ana sentia, devido tanto ao excesso de tarefas que desempenhava quanto ao modo
rotineiro de realizá-las.
(04. QUESTÃO) - “No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a
raiz firme das coisas.”
A forma encontrada por ela para
atingir esse objetivo foi
a) assumir plenamente a organização de um lar.
b) dar espaço real à sua íntima desordem.
c) esquecer sua juventude anterior, sua doença de vida.
d) plantar sementes, mesmo que árvores não crescessem.
e) ficar sozinha à tarde para recuperar suas forças.
(05. QUESTÃO) - O gosto de Ana pelo decorativo revela uma forma de
a) cuidar harmoniosamente da família, eliminando os
problemas.
b) engajar a família na análise e superação dos problemas, íntimos ou não.
c) sublimar os problemas de natureza íntima, criando
uma aparente harmonia.
d) canalizar todas as tensões para a arrumação da casa,
já que ela e a família não tinham problemas.
e) aperfeiçoar a casa e a família, fazendo com que
todos se comportassem de forma semelhante.
(06. QUESTÃO) - O narrador afirma que Ana caiu num destino de mulher.
No texto, esse destino é descrito com o objetivo de
propor uma reflexão sobre
a) a juventude e a velhice.
b) a importância de ser mãe.
c) as diferenças sociais.
d) o papel da mulher na sociedade.
e) a família como verdadeira instituição social.
(01. QUESTÃO) - E
A personagem Ana destaca-se no texto por sua vida
cotidiana e repetitiva em relação às atividades domésticas (tricô, o cuidado com os filhos, o cozinhar, o lavar, o
zelo com o marido etc.). Essa ideia é reforçada no último parágrafo em “...Ana sempre tivera necessidade de
sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera.” Além disso, a oração “viera a cair
num destino de mulher” insere Ana no padrão do lar de
classe média.
(02. QUESTÃO) - D
Resolução
“Plantara sementes e cresciam árvores” são metáforas
da rotina da personagem, que é ironizada pelo narrador
quando essa seqüência de ações cessa (“certa hora da
tarde as árvores que plantara riam dela”), revelando a
insignificância e inutilidade de Ana.
(03. QUESTÃO) - B
Certa hora da tarde torna-se o momento mais perigoso
do dia pelo fato de Ana não se sentir mais exigida nas
tarefas domésticas, pois sua importância só se liga ao
papel de dona de casa, exercido por ela.
Caracterizar os sentimentos da protagonista diante das
situações que o texto evoca como “desconforto” é
uma arbitrariedade que não se pode deixar de assinalar.
(04. QUESTÃO) - A
A oração, em linguagem figurada, “sentir a raiz firme
das coisas” corresponde, em linguagem denotativa, a
“assumir plenamente a organização de um lar”.
(05. QUESTÃO) - C
O gosto de Ana pelo “decorativo” e pelo “vagamente
artístico” denota uma forma de suplantar “a íntima
desordem”, desenvolvendo “uma aparência harmoniosa” que empresta a cada coisa.
(06. QUESTÃO) - D
A descrição das atividades femininas da personagem
tem por finalidade promover uma reflexão sobre o
papel representado pela mulher, dona de casa da classe média, na sociedade da época.
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